Os "Soñetos" de Rui Reininho

Na passada sexta-feira, a Livraria Lello foi palco de um encontro raro: Rui Reininho, voz inconfundível da música portuguesa e, agora, autor da obra Soñetos, encontrou-se em conversa com Rui Couceiro, editor, escritor e admirador de longa data de Reininho, para uma viagem lírica pelos versos que marcaram gerações e que agora se concentram nesta coletânea.
Soñetos, publicado pela Imprensa Nacional na coleção Letra Poema, é muito mais do que uma antologia de letras: é um testemunho estético e afetivo da forma como a língua portuguesa pode ser reinventada — palavra a palavra, rima a rima — por alguém que sempre fez da dissonância um gesto popular.
“O Rui [Reininho] conseguiu o que poucos conseguem: fazer da diferença um lugar comum, do alternativo um fenómeno popular.”
Rui Couceiro iniciou a sessão com uma afirmação certeira: “O Rui conseguiu o que poucos conseguem: fazer da diferença um lugar comum, do alternativo um fenómeno popular.” Para quem cresceu a ouvir os GNR, como o próprio Couceiro, a escrita de Reininho foi escola, enigma e inspiração. Aos 8 anos, ainda antes de saber o que era um “fogo fátuo” ou “ruído branco”, já tentava decifrar a lírica de Rock in Rio Douro, num ritual de escuta obsessiva ao final da tarde.
Entre memórias e admiração, Couceiro evocou expressões que só Reininho poderia criar: bruxa oxigenada, uso-te à la carte molhada em chantilly, bombardeamento estereofónico, pseudo-mãe, biombos indiscretos — construções semânticas que “criam atmosferas”, nas palavras do editor. Atmosferas que desafiam o sentido convencional e instalam uma musicalidade verbal única.
“Nomear é tornar real.”
Rui Reininho mostrou-se, como já é seu costume, irónico, generoso e profundamente genial. Contou como o seu primeiro disco, nos anos 70, era totalmente instrumental, feito de percussões e música concreta, muito antes da entrada nos GNR. Relembrou a influência de Jorge Lima Barreto, do Chiado ao Piolho, e da vanguarda lisboeta que o convenceu de que “o que ele escrevia tinha valor”.
Para Reininho, escrever é um gesto sagrado: “Nomear é tornar real.” E mesmo quando a palavra se aproxima do nonsense, nela reside sempre um pensamento afiado, uma crítica social ou uma memória íntima. Seja em temas como Efetivamente, Dunas, USA, ou 1000991, o que emerge é uma poética da surpresa.
“O livro não é tudo”, disse Reininho, “mas é onde tudo pode começar”.
Entre leituras e digressões, houve espaço para humor, ternura e reverência — tanto pelo percurso de Reininho, como pela força da palavra. A sessão foi também uma ode à infância, ao amor pela língua portuguesa e pelos livros. “O livro não é tudo”, disse Reininho, “mas é onde tudo pode começar”.