Um Amor de Salvação

Às primeiras horas do dia, de início tímido e frágil, o sol revelava-se por detrás das serranias de Valongo. Mas, mal despontado, iniciava decidido e imperial o seu percurso pelo firmamento, aproximando-se da cidade e permitindo que, bem cedo, a luz incidisse no interior dos aposentos do escritor, iluminando-lhe o espírito e aquecendo-lhe o corpo. Pela janela, bem do alto do imponente edifício que era, por agora, a sua casa, Camilo vislumbrava uma paisagem deslumbrante. A cidade estendia-se aos seus pés. E – claro – aos da catedral que, ao longe, o parecia controlar e que, imponente, coroava há séculos o morro da Penaventosa. A cidade agitava-se com o bulício das gentes, dos carros puxados pelos animais que demandavam a urbe e dos impropérios que, desde cedo, exalavam bem alto das bocas de quem passava nas cercanias. E o escritor, na escrivaninha, absorto na sua criatividade, como que por momentos se esquecia do seu drama pessoal. Mas, para lho lembrar, por entre as tábuas do pavimento ia emergindo todo o tipo de bicharada. Como se as nauseabundas condições das enxovias, nos pisos térreos e subterrâneos, afastassem os próprios insetos amantes da humidade e do lixo! Sim. Pareciam estar a fugir daquela podridão! A mesma sorte não tinham os amontoados reclusos que, de um modo desumano, ocupavam aqueles tenebrosos espaços. Sentiu o sol na cara, encheu os pulmões de ar fresco e abriu os olhos sobre o citadino cenário que dominava a sua janela. Pousou a caneta e decidiu que a sorte daqueles farrapos humanos teria de ser outra. E se, como lhe haviam anunciado, o rei D. Pedro V o viria hoje visitar, então colocaria o sensível monarca a par daquela incivilizada condição. Ele certamente saberia inverter este estado de coisas. 
Nas páginas pousadas sobre a mesa, junto ao amplo janelão, nascia uma das joias da literatura ultrarromântica em português: Amor de Perdição. Mas a prisão e permanência de Camilo, durante um ano, na Cadeia da Relação do Porto, ficaria marcada, também, pela sua decisiva ação, junto do jovem rei, que impôs um conjunto de medidas de salubridade que alterou de um modo radical as terríveis condições de vida dos presos que, ao contrário de Camilo, não gozavam do estatuto de ser “gente de condição”. 
Foi um ato de extrema compaixão e solidariedade com o Próximo. Foi também um… Amor de Salvação.